O que Deus não quis calar nas Escrituras, tampouco nós o devemos silenciar e vós tendes que escutá-lo.
Como sabemos, a Paixão do Senhor realizou-se uma só vez; pois Cristo morreu uma só vez, o justo pelos não justos (I Pe. 3,18).E sabemos, e temos por certo e guardamos com fé inabalável, que Cristo ressuscitado dos mortos já não morre, e a morte não mais o dominará (Rom 6,9). Estas palavras são do Apóstolo; contudo, para não esquecermos o que aconteceu uma só vez, cada ano se rememora o fato. Cristo morre tantas vezes quantas se celebra a Páscoa? Não; todavia, a recordação anual como que nos torna presente o que aconteceu outrora e assim nos comove como se víssemos o Senhor suspenso da cruz, penetrados não de sarcasmo, senão de fé.
Foi escarnecido, de fato, quando pendia do madeiro; com assento no céu, é adorado. Ou será, por acaso, que até hoje não é escarnecido (...)? E quem é que ainda zomba de Cristo? Prouvesse a Deus que fosse um só, que fossem dois, que se pudessem contar! Toda a palha de sua eira escarnece dele e o trigo geme por ser escarnecido seu Senhor. Sobre isto quero gemer convosco, pois é tempo de chorar.
Celebra-se a Paixão do Senhor; é tempo de gemer, de chorar, de confessar os pecados e de suplicar. E quem de nós é digno de verter lágrimas na medida de tamanha dor? Mas, que diz precisamente o profeta? Quem dará que minha cabeça se transforme em água, e meus olhos, em fonte de lágrimas? (Jer 9,1) Realmente, ainda que houvesse em nossos olhos uma fonte de lágrimas, nem esta bastaria.
Vede quanta coisa padeceu! E qual é o resultado? Eis que nossos pais esperaram e foram arrancados (Sl 21,5) da terra do Egito. E como eu disse, tantos invocaram (a Deus) e, imediatamente na hora, sem esperar a vida futura, logo foram libertados! O próprio Jó foi entregue ao demônio que o pedira, e apodrecia carcomido pelos vermes; entretanto, ainda nesta vida, recobrou a saúde, recebeu em dobro o que perdera. Ao passo que o Senhor foi flagelado e ninguém lhe acudiu; foi desfigurado pelos escarros e ninguém lhe acudiu; deram-lhe bofetadas e ninguém lhe acudiu; foi levantado sobre o madeiro e ninguém o tirou daí: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mt 27,46; Sl 21,2) Não lhe acodem. Por quê, meus irmãos? Por quê? A troco de que padeceu tanto? Tudo quanto padeceu é o preço de nossa redenção.
Sto Agostinho, Enarrationes II In Psalmos XXI
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