Josef Pieper
Se perguntarmos, então, sóbria e objetivamente, o que se pode exigir e esperar em termos de "ser-bom" do homem comum - e, portanto, de cada um de nós -, logo pede a palavra a antiga sabedoria que fala do espectro de quatro cores em que se desdobra a luz da perfeição. É a doutrina das "Virtudes Cardeais": Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança. O termo latino cardo significa gonzo, que abre o portal da vida.
Esses quatro nomes certamente já foram ouvidos muitas vezes, sem que se significado fosse levado a sério. No momento, porém, em que isto se faça, a situação torna-se complicada. Por exemplo: como pode a Prudência ser virtude? - é o que já à primeira vista cabe perguntar. E a compreensão tornar-se-á ainda mais difícil quando nos disserem que a seqüência não é casual, mas obedece a um significado e a uma hierarquia: à Prudência, cabe, portanto, o primeiro e mais elevado posto. E mais ainda, tal formulação nem ao menos é precisa; a rigor, a Prudência não ocuparia um lugar como elo dessa série: ela não é algo assim como a irmã das outras virtudes; ela é sua mãe e já foi designada literalmente como "genitora das virtudes" (genitrix virtutum).
Desse modo, ninguém poderia - e, por estranho que possa parecer, de fato é a assim - praticar a Justiça, a Fortaleza ou a Temperança a não ser que seja ao mesmo tempo prudente. Ao mesmo tempo e até antes.
Pelo uso comum da linguagem e pelos hábitos de pensamento temos alguma dificuldade não só para concordar com o acima afirmado, mas até para entendê-lo. Pois não dizemos na língua alemã que é "prudente" (klug em alemão significa prudente e esperto) quem é esperto e com ágil inteligência logo percebe como levar vantagem? E não dizemos que Fulano ou Sicrano é "prudente demais" e, portanto, não defende com determinação e coragem suas convicções? Tudo isto, sem dúvida, é certo. No entanto, devemos esquecer estes casos, deixá-los de lado e lembrar-nos de outras situações que nos são igualmente familiares - por exemplo, de que, digamos, em caso de conflito, ninguém pode tomar uma decisão justa se não conhece a realidade: como são as coisas e em que pé estão. O mais puro desejo de Justiça, a "melhor das boas vontades", a "boa intenção" - tudo isto não basta. Antes, a realização do bem concreto pressupõe o conhecimento da realidade.
Isso se pode exprimir também do seguinte modo: o agir humano é bom e ordenado quando procede da verdade, que afinal de contas nada mais é que o vir-a-encarar a realidade. E precisamente este é o sentido da prudência e de sua posição privilegiada: que - tanto quanto possível - vejamos a realidade, que eu veja como realmente são os elementos que compõem a situação que exige de mim uma decisão.
Este "ver as coisas", entretanto, não é de modo algum assunto acessório, que se possa considerar com ligeireza. Além do mais, a capacidade de "ver a realidade" é ameaçada de diversas maneiras. Pois não se trata de uma neutra contemplação da natureza, mas da incorruptível "busca da verdade" a respeito de situações nas quais costumam estar fortemente envolvidos fatores de interesse. O que importa, portanto, é fazer calar nosso interesse - e, talvez também, ouvir o outro, possivelmente oponente. Quem não consegue isto, ou a isto não está disposto, jamais chegará a ver a realidade como ela é.
Mas isso é apenas o começo e a primeira metade da Prudência. A outra, bem mais difícil, consiste em transformar aquilo que foi visto, a verdade das coisas, em diretriz do próprio querer e agir. Só então se perfaz a virtude da Prudência, que com razão foi definida como sendo "a arte de decidir-se corretamente".
Só quem domina esta arte pode ser considerado como um homem moralmente maior, adulto. Para ele foi cunhada a palavra da Sagrada Escritura: "Se o teu olho é simples (simplex), então todo teu corpo estará na luz" (Mt 6,22)
Josef Pieper In: LAUAND, Jean. Linguagem e Ética; Ensaios. Curitiba: Editora Universitária Champagnat, 1989.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fique à vontade para comentar. Mas, se for criticar, atenha-se aos argumentos. Pax.