Josef Pieper
Quem hoje pensa em "Justiça", sobretudo se é jovem, logo se lembrará do estribilho "sociedade"; a sociedade parece-lhe a injustiça encarnada, com o que, talvez, não deixe de ter razão. No entanto, deve deixar-se lembrar que estamos agora falando da Justiça como virtude, portanto de uma atitude que só pode ser exigida da pessoa singular e por ela realizada.
A Justiça já foi chamada também "arte de conviver"; uma formulação que por sua vez pode também ser mal-interpretada: como se não se tratasse de nada mais do que arranjar-se com os outros. Não é isso no entanto o que se quer dizer; mas, mais propriamente, um conviver em que cada um recebe o que lhe é devido: "A cada um o que é seu" (como diz a antiga sentença).
Exatamente isto - assim o tem afirmado o clássico pensamento ocidental desde os antigos gregos até as encíclicas sociais dos papas - exatamente isto é a Justiça: a vontade constante de dar a cada um, com quem nos relacionamos, aquilo que lhe é devido.
A Justiça é pois, como vemos, algo que está em segundo lugar: ela pressupõe algo diferente de si mesma: a saber, que haja alguém a quem algo é devido e que aquele que é convidado a exercer a Justiça aceite esse "dever".
Agora, quanto à pergunta sobre se e por que razão algo é devido ao outro (e, naturalmente, também a mim), e sobre o que se lhe deve dar ou conceder - esta pergunta não é facilmente respondida. Que ao trabalhador é devido o justo salário, ainda é o mais fácil de evidenciar. Ainda que na época dos campos de trabalhos forçados isto não seja tão evidente quanto parece.
No que deve residir então a causa de que a todo aquele que porta uma face humana, simplesmente pelo seu ser-homem, inalienavelmente algo lhe seja devido? Por exemplo, que sua honra como pessoa seja respeitada. O conceito de pessoa, de fato, é aqui decisivo - enquanto se compreende "pessoa" como um ente que existe para seu próprio aperfeiçoamento e realização. Mesmo assim, em caso de conflito, ao se chegar aos extremos, não basta retroceder ao mero ser-pessoa (como supunham alguns filósofos idealistas). É necessário nesses casos, poder colocar em jogo uma instância absoluta, mais além de qualquer instância humana, ou, dito de outro modo: o outro deve ser-me intocável por eu o ver como ente criado por Deus como pessoa.
Não se pense ser esta uma concepção especificamente cristã ou teológica. Foi um chinês confuciano quem declarou, - aos seus, presumivelmente atônitos, colegas da comissão da UNESCO para a reformulação dos direitos humanos -, que lhe havia sido transmitido por tradição, como fundamento dos direitos humanos, que: "O Céu ama o povo e o que exerce o poder deve obedecer ao Céu". E Emanual Kant - que não era lá propriamente um teólogo cristão - diz: "Temos um santo regedor e o que ele deu ao homem de sagrado é o direito dos homens".
Garantir e proteger esse direito é o sentido intrínseco do Poder. E quer se trate do poder político ou da autoridade em círculos menores (família, unidade militar, empresa) sempre vale: quando o poder não cuida da Justiça, ocorre invariavelmente a injustiça, e não há injustiça mais desesperadora no mundo dos homens do que o uso injusto do poder. E, no entanto - e é uma idéia tão desagradável -, poder do que não se pode abusar, no fundo não é poder...
Mas, aquele que se aprofunda mais, deparará com uma nova complicação, ainda mais radical, no tema da Justiça. Pois o mundo dos homens está feito de maneira tal que, em alguns casos determinados e altamente significativos, é impossível dar de fato ao outro aquilo que - sem sombra de dúvida - lhe é devido. Os antigos pensavam aqui, antes de mais nada, nas relações com Deus; a Ele não podemos, na verdade, dizer nem a respeito de um instante sequer: "Já te dei o que te devia, agora estamos quites".
Por isso, os grandes mestres do cristianismo afirmavam que, dada a incapacidade da Justiça, ao invés de Justiça, no caso das relações com Deus, deveria entrar como substituto, como Ersatz, a modo de recurso improvisado, a religio; entrega, adoração, disposição para o sacrifício, atitude de reparação.
Mas também no âmbito do convívio humano há dívidas que por natureza não podem ser realmente pagas e quitadas. Também à minha mãe, aos meus professores, aos justos administradores das funções públicas não posso, em sentido estrito, restituir na medida em que lhes devo; se olharmos exatamente nem sequer sou capaz de "pagar", de tal maneira que recebam tudo o que lhes devo, a amabilidade de um garçom ou a lealdade de uma empregada doméstica.
E assim deve - quando os casos são como devem ser - novamente entrar no lugar da Justiça (impossibilitada de realizar-se), outra coisa: piedade. A atitude de honrá-los e o respeito (não realizado apenas interiormente) que diz: devo-te algo que não posso pagar, e manifesto que estou consciente disso através dessas atitudes.
Quando nos sabemos assim agraciados e endividados diante de Deus e dos homens, não colocamos tão facilmente nossa vida em atitude de reivindicações pela pergunta: "O que me é devido?"
Josef Pieper In: LAUAND, Jean. Linguagem e Ética; Ensaios. Curitiba: Editora Universitária Champagnat, 1989.
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