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São João Batista e a Eucaristia


Passei esses dias sem net, mas aqui ponho um texto que une, muito oportunamente, a pessoa de S. João Batista, que celebramos hoje, e a Eucaristia, cuja instituição celebrávamos ainda ontem. O texto é do excelente e altamente recomendável Pe. Ronald Knox e nele há afirmações e sutilezas que, se meditadas, poderão resultar numa compreensão bem mais profunda deste tesouro escondido que é a vida com Cristo. Boa Leitura.

***
Pe. Ronaldo Knox

Penso que não me engano se digo que a festa do Corpus Christi é comemorada este ano no dia mais distante em que pode recair: 24 de junho. E assim choca, por uma curiosa coincidência, com a única festa de verdadeira importância com que pode coincidir e sobre a qual prevalece: o nascimento de São João Batista. Na verdade, não é que a joguemos para fora do calendário; celebramos essa festa amanhã. Mas, por uma vez, o grande Precursor vem atrás do seu Mestre.

Não penso que haja nenhum santo a quem possamos imaginar aceitando esta situação de mais bom grado que São João Batista. Nasceu, se podemos dizê-lo, para ser o homem que sempre fica de fora. O próprio Senhor no-lo confirmou: "Pobre João! - disse-. É o maior homem nascido de mulher, e, no entanto, é menos que o último dos que estais aqui, porque o Reino dos céus é para vós, não para ele" (Cfr. Mt 11,11). Situa-se ao lado dos heróis do Antigo Testamento, que viveram na esperança, mas nunca a viram realizada; de Profetas e Reis que suspiraram por longo tempo pela vinda do Messias, mas morreram sem vê-lo. Todos se lançam em corrida para entrar no Reino dos céus, os mais violentos arrebatam-no à força, e ele, João, fica de fora. Lembremo-nos de que o Precursor não tinha morrido quando o Senhor disse isso; estava apenas preso. Mas a verdade é que não estava destinado a ver como se cumpriria a salvação do mundo.

São João percebia-o, pressentia-o. As multidões que costumavam ir a ele, desejosas de ser batizadas, tinham quase desaparecido, e os seus discípulos queixavam-se de que Jesus de Nazaré, esse profeta novo, lhe tirara os seus ouvintes, apoderara-se dos seus métodos e o vinha eclipsando. E São João replicava com as palavras que citei acima: Importa que ele cresça e eu diminua. O seu destino - disse - era ser como o padrinho numa cerimônia de casamento: todo o interesse converge para o noivo e a noiva, todas as aclamações são para os dois, e ele há de prestar-lhes a sua companhia... Com inveja?, mal-humorado? Não, mas alegrando-se de ouvir a voz do esposo (cfr. Jo 3,29) Tinha aprendido a pôr-se de lado e abrir caminho para Cristo. Por isso vo-lo proponho hoje como um dos santos do Santíssimo Sacramento.

Não pôde viver para chegar à Última Ceia e receber o corpo de Jesus das mãos do próprio Jesus. Não pôde viver para esperar com a Virgem e os Apóstolos a vinda do Espírito Santo no Cenáculo. Mas deixou-nos essa frase preciosa que nunca devemos esquecer quando esperamos que o Senhor venha a nós na sagrada comunhão: Importa que ele cresça e eu diminua.

Se lermos o último versículo do primeiro capítulo de São Lucas, encontraremos as palavras: O menino foi crescendo, referidas a São João Batista. Se lermos um pouco mais adiante, no versículo 40 do capítulo seguinte, encontraremos de novo as mesmas palavras: O menino crescia, mas desta vez referidas a Cristo. Tomemos esses dois versículos juntos e teremos toda a biografia de São João. Exatamente, São João cresceu; internamente, na sua alma, não cresceu nunca: era o menino-Jesus Cristo, seu primo, que crescia dentro dele. O grão de trigo que cai no sulco e morre, para produzir muito fruto, foi semeado no coração de São João Batista, e o que brotou não foi São João, mas o Verbo de Deus: Jesus Cristo.

A imagem do grão de trigo leva-nos à parábola das sementes que o semeador lança a mãos-cheias e que produzem frutos maiores ou menores consoante o terreno em que caem e as vicissitudes que se seguem. Saiamos ao campo nesta época do ano e observemos algum pedaço de terra que tenha sido semeado em data recente. Que encontraremos? Um mar verde que deleita os olhos como faz o mar com as suas ondas de diversas tonalidades de luz. Mas aproximemo-nos um pouco mais e olhemos de perto. Que vemos? No meio do trigo que cresce..., urtigas, cardos, ervas daninhas, toda uma vegetação silvestre. Eram as antigas donas do terreno, até que um dia chegou o agricultor e espalhou pelo solo o misterioso tesouro do bom grão. Houve uma luta entre as plantas originais, velhas e fortes, e as sementes intrusas, uma luta para decidir qual das duas espécies desfrutaria da riqueza da terra, qual cresceria mais alto e roubaria o sol à outra. E a plantação introduzida pelo homem ganhou a batalha.

É uma imagem das nossas almas, ou melhor, oxalá o seja. É a imagem de uma alma em que a graça divina venceu, da alma de um santo ou de alguém perto de ser santo. O salmista põe na boca de Deus todo-poderoso estas palavras dirigidas ao seu Filho: Dominare im medio inimicorum tuorum, "domina entre os teus inimigos" (Sal 109,2). Esta deve ser a nossa oração, cada vez que o Senhor vem a nós na sagrada comunhão.

Queremos que Ele domine as nossas almas, sempre cheias de inimigos seus: o orgulho, a cobiça, a sensualidade, o ressentimento, que estão empenhados em disputar-lhe cada polegada de terreno. Somos criaturas caídas: os espinhos e abrolhos brotam em nós sem cessar. E a graça chega como um intruso, disposto a lutar pela sua supremacia em paragens hostis. Ora, a mais santificada das almas humanas não é melhor que esse campo de trigo do que falamos: olhemos sob a sua superfície e veremos ali todas as paixões humanas, abatidas, mas não plenamente desarraigadas. Se é assim com as melhores, que será com as nossas?

Profundamente enraizado na nossa natureza, misteriosamente prolífico, estendendo-se numa rede de ramificações sutis, encontra-se o instinto de auto-afirmação. Vemo-lo na sua forma mais crua nas crianças, no seu desejo de brilhar, que às vezes é divertido, mas às vezes irrita. Chegam os dias do colégio e os professores e os colegas esforçam-se por extirpar esse evidente defeito. Depois que crescemos, talvez os convencionalismos sociais nos obriguem a disfarçá-lo; afinal, não fica bem exibirmo-nos. Mas sabemos que está aí. Como são poucas as pessoas que aceitam com equanimidade, mesmo externamente, que não lhes peçam conselho, ou, se lhes pedem, que não se faça caso dele; que sejam preteridas quando se trata de preencher um cargo; que os seus rivais profissionais adquiram fama na mesma especialidade em que elas pensavam conquistá-la! E se olharmos para o interior do nosso coração, o sentimento amargo de termos sido maltratados, quando se fere a nossa importância, jaz às vezes muito mais lá no fundo de nós mesmos do que poderíamos imaginar. Não é caso para desesperar, mas devemos reconhecer que é talvez o sinal mais certo de que estamos muito longe de ser santos.

E uma das razões, sem dúvida, de que o Senhor venha a nós na sagrada comunhão é a de fazer com que afirmemos mais a pessoa de Cristo, e, em consequência, afirmemos menos as nossas próprias pessoas. E se o instinto de auto-afirmação continua a ter força dentro de nós, podemos estar certos de que Cristo ainda não domina entre os seus inimigos. É esse "eu" que infecta até mesmo as nossas orações e as nossas virtudes, que faz com que queiramos ser puros para nos podermos sentir puros, ser humildes para ter a liberdade de criticar o orgulho dos outros, mortificar-nos para nos podermos gloriar da nossa austeridade, em vez de querermos simplesmente que se cumpra a vontade de Deus em nós e em todos os outros. É esse "eu" que leva tão a mal todos os seus fracassos e decepções, que pergunta por que "isto" há de ser poupado aos outros e acontecer-me "só a mim".

Devemos procurar humilhar-nos de vez em quando, tomar consciência do pouco que progredimos, pensando na figura de São João Batista. Quando o sacerdote ergue diante de nós a Sagrada Hóstia antes de nos dar a comunhão, repete as palavras do Precursor: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (Jo 1,29). E quando São João disse isso, sabia que estava encaminhando  os pensamentos dos seus discípulos para outro Mestre e que ele os perderia, que perderia gradualmente toda a sua popularidade, mas não se importava. Via fechar-se para ele o Reino dos céus - mais exatamente a manifestação terrena desse Reino -, tal como uma criança que amassa o nariz contra a vitrine onde se expõem os brinquedos que deseja; mas não se queixava. Importa que ele cresça e eu diminua. Era preciso que Cristo fosse cada vez mais e mais, e ele cada vez menos e menos; que houvesse cada vez menos dele para que houvesse cada vez mais de Cristo.

Pe. Ronald Knox, Reflexões Sobre a Eucaristia
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