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Sobre cadáveres que andam


"Quantas almas realmente vivas [existem] nesse fervilhar de seres humanos? Uma por cem mil, talvez. Ou, por cem milhões. Não se sabe. Há seres superiores, homens de gênio mesmo, talvez, cuja alma não foi vivificada e que morrem sem ter vivido. Um coração simples dirá cada dia, chorando de angústia: "Em que pé estou com o Espírito Santo? Sou verdadeiramente um vivo ou um morto que se devia enterrar?" É terrificante pensar que se subsiste no meio de uma multidão de mortos que se acredita vivos e que o amigo, o companheiro, o irmão que se viu de manhã e que se vai tornar a ver à noite, só tem vida orgânica, uma aparência de vida, uma caricatura de existência. E que, na verdade, é apenas diferente daqueles que já se estão desfazendo nos túmulos. É intolerável, por exemplo, pensar que se nasceu de pai e mãe que não existiam. E que esse padre, presente no altar, talvez não seja muito diverso de um outro já falecido e que o Fármaco de imortalidade, o Pão que ele consagrou para vos transmitir a Vida eterna, ele o vai estender com mão de cadáver, proferindo com voz defunta as santas palavras da liturgia! Funcionam, no entanto, todos esses fantasmas, com uma perfeita regularidade. A missa daquele padre é tão válida quanto a de um santo. Certa, a absolvição que administra aos pecadores. A força de seu ministério sobrenatural perdura enquanto a morte não triunfou definitivamente dele. E assim sucede com todos os semi-trespassados que nos rodeiam e que somos forçados a chamar, por antecipação: mortos. Continua-se a agir e mesmo a pensar mecanicamente, com uma alma destituída de vida"

Léon Bloy

FARIA, Octávio de, Léon Bloy. Rio de Janeiro: Gráfica Record, 1968, pág. 126
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