Se a palavra "bitolado" da nossa linguagem familiar, tem algum sentido, este sentido adquire feições, olhos e mãos nos personagens - habitantes de minúsculos asteróides - que o Pequeno Príncipe5 visita na sua viagem sideral.
O acendedor-de-lampiões vive num mundo reduzido a um lampião esguio, que deve acender e apagar sem descanso, a cada volta do seu asteróide. O bêbado povoa solitariamente um pequenino mundo concentrado na obsessão por garrafas cheias e garrafas vazias. Para o rei, viver é poder dizer de boca cheia (quanto pode): "Ordeno-te"...
Acontece que o planeta Terra está povoado por inúmeros "homens de asteróide". Pessoas muito atarefadas, mas inteiramente polarizadas em uma ou duas ocupações, a que reduzem, na prática, todo o seu "mundo".
Começávamos estas páginas referindo-nos aos que sorriem, ao ouvirem falar de preguiça. Mas esses mesmos - que talvez sejamos nós - sentir-se-ão muito aborrecidos se a referência à preguiça lhes for espetada com endereço pessoal: - "Você é um preguiçoso!". Uma onda quente de revolta subirá à cabeça e à garganta: - "Eu, preguiçoso? Mas se não tenho nem um minuto livre, se trabalho sem folga nem férias... Precisaria, em todo o caso, é de um pouco mais de descanso...".
Uma pessoa pode ser ocupadíssima... e ter uma profunda preguiça, a preguiça do homem "bitolado", isto é, daquele que reduziu o ideal, a vida e o dever a apenas um ou dois asteróides. Estes podem ser, para um homem, o trabalho profissional e o cuidado das condições materiais da família; ou, se se trata de uma mãe de família, a atenção do lar e dos filhos, e um emprego de meio-período que permita reforçar o orçamento familiar; ou ainda, no caso do modesto estudante, a frequência às aulas, acrescida do serviço num banco.
Todas essas pessoas, trabalhadoras e responsáveis, podem estar padecendo, sem saberem disso, da doença da preguiça setorial. Há setores da vida em que realmente se empenham, produzindo muito; mas há outros, muitas vezes mais importantes, que deixam abandonados como o campo do preguiçoso de que fala a Bíblia: Passei perto da terra do preguiçoso, junto à vinha de um homem insensato: eis que por toda a parte cresciam abrolhos, urtigas cobriam o solo e o muro de pedra estava por terra (Prov. 24,30).
Não há dúvida de que o quadro completo da missão de um homem ou de uma mulher não se esgota na profissão e na família, por mais que estes sejam setores importantíssimos, primordiais, de sua vida. Deve haver algo mais. Por acaso pode considerar-se realizado alguém que deixou completamente estéril, ou quase, o campo das suas relações com Deus e da sua formação cristã? Pode pensar que cumpre a sua missão aquele que vive de costas para as necessidades espirituais e materiais do próximo?
Seria muito cômodo anestesiar a consciência pensando: "Não perco tempo, trabalho muito, vivo para o lar...", e fazer desses deveres mais ou menos bem cumpridos um sedativo para a alma, esquecida dos outros deveres que não cumpre: deveres para com Deus, deveres sociais, responsabilidades em face dos problemas da comunidade humana. Sempre paira sobre os cristãos mornos o que alguém denominou "o perigo das coisas boas"6: coisas boas que fazemos, para acobertar o vazio de outras tantas coisas boas que não fazemos, e deveríamos fazer.
Não é infrequente, neste ponto, ouvir comentários como o do homem casado que se gaba da luta extenuante que se impõe para sustentar a família, mas não se apercebe de que, desculpando-se com a fadiga do trabalho, nem sequer toma conhecimento do dever de educar os filhos, de conversar com eles, de formá-los. Não raro, é o mesmo tipo de pai que estufa o peito ao contar com quanto sacrifício conseguiu dar aos filhos estudos em colégios de nível; e, ao mesmo tempo, nada vez para lhes proporcionar uma boa formação religiosa e moral, muito mais importante que um brilhante aprendizado de álgebra, biologia ou história.
Essas deficiências são reais e frequentes. É possível que, ao reconhecê-las, sintamos desejos de retrucar: "Tudo isso é certo, mas onde encontrar tempo para tantas coisas?" O meu tempo não dá para mais..." Como um comentário desse tipo parece objetivo, será oportuno abordar um outro aspecto da preguiça, que pode esclarecer essas aparentes contradições.*
5- Antoine de Saint-Éxupery, O Pequeno Príncipe, 25ª ed., Ed. Agir, Rio de Janeiro, 1983, pág. 37 e segs.;
6- Salvatore Canals, Reflexões Espirituais, Quadrante, São Paulo, 1985
Francisco Faus, A Preguiça, 2ª ed. São Paulo: Quadrante, 1993. pp. 10-13
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*Este outro aspecto da preguiça será transcrito posteriormente num post entitulado "As Máscaras da Preguiça"
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