Estamos às portas da quaresma que é um tempo penitencial onde revivemos, com Cristo, os seus dias de retiro no deserto. É importante notar que Jesus foi conduzido para lá pelo Espírito e é este mesmo Espírito que, nestes dias, conduz toda a Igreja Católica. "Te levarei ao deserto e lá te falarei em intimidade". Aí está a razão principal pela qual nos retiramos: pretendemos, com isto, estreitar os nosso laços com Deus.
O deserto é um lugar de privação e de combate. Os excessos da nossa concupiscência não têm satisfação lá e a nossa sensibilidade é constantemente aborrecida. E é este o espírito da quaresma: mortificar o nosso egoísmo para que possamos estar mais abertos a Deus. Nós lemos, na libertação do povo de Deus da escravidão, como as dificuldades da transição faziam com que alguns até sonhassem com as cebolas do Egito, arrependendo-se do trajeto iniciado. No entanto, a presença constante de Deus era evidente. Também agora, na quaresma, muitos talvez anseiem pelos prazeres lícitos do tempo comum e, Deus nos livre, até pelos ilícitos: os prazeres da escravidão. Durante o processo, parece que se tem a visão nublada, pois, não obstante a grande proximidade de Deus, muitas pessoas não conseguem sentir a alegria, distraídos que estão pelos reclames da sensualidade. Isto nos dá uma idéia da seriedade da nossa miséria; como andamos embotados e ávidos pelos prazeres mais baixos. Simplesmente não temos a sutileza dos sabores celestes. Somos como os cães, acostumados às migalhas, que são os prazeres baixos. Porém, aos cães não será dado o pão dos filhos. O processo do deserto pretende, então, reestabelecer a nossa condição de filhos, e para isto se exige um certo esforço. Para voltar à casa paterna, o filho pródigo teve de deixar a lavagem.
Jesus, no deserto, vence o demônio e é servido pelos anjos. Nós, pela nossa inconstância e impaciência, raramente chegamos ao segundo estágio. Acostumados que estamos a confiar somente na nossa força, repetidamente somos derrubados e vencidos. À primeira tentação, suplicamos que as pedras sejam transformadas em pão. Se, porém, tivéssemos o empenho de, violentamente fiéis a Deus, vencer aos ataques do demônio - auxiliados pela Graça, claro - passaríamos pela experiência do consolo dos anjos. O deserto se tornaria céu. E esta é a proposta: elevar os olhos e o coração e perceber que, acima dos desgostos da sensibilidade provocados pelos jejuns e mortificação, a nossa alma poderá se deleitar no Senhor. Acima das caretas do nosso egoísmo atacado pela prática da esmola, Nosso Senhor estará a nos sorrir.
Devemos encarar todo este processo como um modo de purificação. Somos a noiva do Senhor. Esta noiva precisa ser perfeita! É tempo, então, de extirparmos os nossos vícios, que é o que nos enfeia; de cruficarmos a nossa carne com suas paixões e concupiscências, e adquirir a leveza de ter o coração no alto. "Escutai, minha filha; olhai, ouvi isto: que o Rei se encante com a vossa beleza".
Quando Jesus volta do deserto, inicia a Sua pregação e, segundo o Evangelho de Marcos, ela consistia basicamente em aconselhar a penitência e a crença no Evangelho. Ora, a penitência é justamente o acento, a ênfase da quaresma e ela deve ser praticada de forma sistemática, mas nunca como fim: é sempre um meio para a liberdade, para a recuperação da saúde espiritual, para prevalência do amor, para a leveza do coração. O escritor Giovanni Papini afirma que o termo "penitência", assim como foi traduzido, tem uma densidade semântica menor que o termo original, o grego "metanóia". De fato, este vocábulo grego simboliza uma transformação total de mente, de convicções, de atitudes, enfim, de todo o ser do homem. Tal é a proposta da quaresma: fazer com que todo o nosso ser se volte decididamente para Deus e permitir que as implicâncias desta proximidade possam fluir e animar a vida como um todo.
No entanto, esta conversão total não é possível pelo nosso mero esforço natural. Precisamos absolutamente da graça, ainda que ela não nos dispense da nossa contribuição pessoal. E de que forma podemos colaborar? Fazendo penitência! Daí que eu vejo que esta união dos dois termos - metanóia e penitência - ainda que, estritamente, portem significados um pouco diversos, servem para nos fornecer toda uma estratégia de combate e uma clara finalidade para este combate. Nem caímos na desvirtuação da penitência encarada apenas como aspecto exterior, como um fim em si mesmo e, deste modo, como potencial reforço da vaidade; nem caímos numa coisa naturalista e meramente abstrata. A conversão, embora interior, se adquire pela adoção de métodos, como falamos, de combate espiritual que também são exteriores e, além disto, os efeitos da conversão vão se refletir também nas atitudes.
Ao recebermos as cinzas na testa, comprendamos que somos pequenos, que as coisas passam e que Deus é eterno. Lembremos que, debaixo do sol, tudo é vaidade e os sonhos terrenos dos homens são como fumaça. Como dizia o C.S. Lewis, "aquilo que não é eterno, é eternamente inútil". Nesta compreensão, poderemos seguir o conselho da Igreja: "andar pelas coisas que passam e abraçar as que não passam".
Tudo isto, porém, só terá sentido se tivermos o dom da Fé, isto é, se crermos no Evangelho.
Que a Virgem Santíssima, Aquela que acreditou, nos ensine a acreditar. E que Ela, que esmagou a cabeça da serpente, nos ensine a eficácia do Seu combate. Que, enfim, Nosso Senhor, como pedia o salmista, prevaleça contra os Seus inimigos, os da nossa alma e os da Santa Igreja.
Fábio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fique à vontade para comentar. Mas, se for criticar, atenha-se aos argumentos. Pax.