Já que o tempo era chegado em que fazer-se devia
o resgate da esposa que em duro jugo servia,
debaixo daquela lei que Moisés dado lhe havia,
o Pai com amor terno desta menria dizia:
- Já vês, Filho, que tua esposa à tua imagem feito havia,
e no que a ti se parece contigo coincidia;
mas é diferente na carne, que em teu simples ser não havia
pois nos amores perfeitos esta lei se requeria,
que se torne semelhante o amante a quem queria
porque a maior semelhança mais deleite caberia;
o qual, por certo, em tua esposa grandemente cresceria
se te visse semelhante na carne que possuía.
Minha vontade é a tua - o Filho lhe respondia -
e a glória que eu tenho é tua vontade ser minha;
e a mim me agrada, Pai, o que tua Alteza dizia,
porque por esta maneira tua bondade se veria;
ver-se-á teu gran poder, justiça e sabedoria;
irei a dizê-lo ao mundo e notícia lhe daria
de tua beleza e doçura, de tua soberania.
Irei buscar minha esposa e sobre mim tomaria
suas fadigas e dores em que tanto padecia;
e para que tenha vida, eu por ela morreria,
e tirando-a das profundas, a ti a devolveria.
Então chamou-se um arcanjo que S. Gabriel se dizia,
enviou-o a uma donzela que se chamava Maria,
de cujo consentimento o mistério dependia;
na qual a santa Trindade de carne ao Verbo vestia;
e embora dos três a obra somente num se fazia;
ficou o Verbo encarnado nas entranhas de Maria.
E o que então só tinha Pai, já Mãe também teria,
embora não como outra que de varão concebia,
porque das entranhas dela sua carne recebia;
pelo qual Filho de Deus e do Homem se dizia.
Quando foi chegado o tempo em que de nascer havia,
assim como o desposado, do seu tálamo saía
abraçado a sua esposa, que em seus braços a trazia;
ao qual a bendita Mãe em um presépio poria
entre pobres animais que então por ali havia.
Os homens davam cantares, os anjos a melodia,
festejando o desposório que entre aqueles dois havia.
Deus, porém, no presépio ali chorava e gemia;
eram jóias que a esposa ao desposório trazia;
e a Mãe se assombrava da troca que ali se via:
o pranto do homem em Deus, e no homem a alegria;
coisas que num e no outro tão diferente ser soía.
S. João da Cruz, Romantes Trinitários e Cristológicos, Toledo, Cárcere - 1578.
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