S. João da Cruz, Doutor Místico da Igreja |
Seguindo a temática da postagem precedente, tratemos, então, do silêncio propriamente interior, que é o que mais importa.
Há, como eu já referi de outra vez, uma atitude que é comumente recomendada e que consiste, segundo se diz, em pôr-se à escuta de Deus, isto é, colocar-se em receptividade à voz divina. Só que esta expressão é análoga e, se não se explica, lá se vão os sujeitos procurar qualquer coisa que se assemelhe a uma voz sensível, ainda que imaginada. E é claro que, quando se procura algo desse tipo, a imaginação encontra espaço pra atuar. Estas supostas visualizações - que são a mesma experiência transmutada ao campo da visão - e supostas palavras 'reveladas' provenientes da oração são, na extrema maioria dos casos, criadas pelo próprio indivíduo. É um caso de ingenuidade, mas que pode viciar e dar uma visão totalmente errada sobre Deus, sobre a vida espiritual. Suponhamos que o sujeito imagine um disparate, tipo: Deus agora tornou-se um quarteto.. rs Esse absurdo, para o rapaz lá, terá uma autoridade supostamente divina, pois ele está crente de que foi Deus quem lho revelou. Uma coisa muito parecida é o que acontece na RCC e em todos estes movimentos pentecostais, que prezam muito pelo subjetivo, erigindo-o como critério de verdade. Além do que a vaidade humana encontra aí seu deleite, pois tais revelações, claro, Deus só as faria aos seus favoritos! Juntou-se então ingenuidade, auto-ludibriação, e a comodidade da suposta preferência divina.
Este assunto, pouco tratado embora tão importante, daria um post inteiro e ainda ficaria muita coisa por dizer. Para nós, agora, importa mostrar que o que se afoita em busca destes sinais divinos impede, na prática, o silêncio. A disposição a Deus, então, significa outra coisa. É óbvio que esta busca non sense de que falamos impede que a alma se aquiete, pois ela - a alma - mantém-se ativa enquanto procura o tal objeto - a voz divina - que pensa poder encontrar. E este é um outro impedimento para o recolhimento, para a solidão interior, para a quietude espiritual. O que se fazer, então? Primeiro, seria importante ter uma pelo menos modesta formação sobre a espiritualidade católica, sem mesclas de gnose e pentecostalismo. Isso é importante e creio ser capaz de fazer cessar esta caçada por sinais divinos e sensíveis. Leia-se a este respeito, sobretudo, S. João da Cruz.
Pois bem. A fim de estabelecermos o silêncio que estamos buscando, é preciso que nos esvaziemos interiormente. Para isto, focamos, principalmente, quatro faculdades: o intelecto, a memória, a imaginação e a vontade.
Se pretendemos o silêncio estrito, comecemos por não pôr objetos ao nosso intelecto no momento desta prática. Existem os métodos de oração em que o intelecto aprofunda as verdades de fé e estuda as implicâncias delas. Aqui é diferente. Se o que se busca é o silêncio, então o intelecto vai ficar quieto. Simplesmente não se ponha nada sob análise, e aqui vai algo sutil: é possível que, enquanto silencia, o indivíduo, crente de que está quieto, esteja, ao invés, avaliando o próprio método e atento às 'regrinhas' do processo.. rsrs. Ao contrário, devemos aprender a fazer isto de um modo bem natural e simples, "fazendo como se não fizéssemos", para relacionar com S. Paulo. Nada de ficar obcecado por métodos de oração e regrinhas de 'como-fazer'. O que aqui vai escrito não são regras; são antes formas de fazer compreender do que se trata o silêncio e dos meios genéricos para o recolhimento.
Depois de aquietado o intelecto e abandonados os conceitos, a memória deve, também, ser aquietada. Para isto, devemos nos disciplinar a não evocar lembranças. E, ainda que elas surjam, exercer um pequeno esforço para que se aquietem e não dar atenção às que surgiram. Suponhamos, então, que lembremos de algo pecaminoso; o que fazer? Obviamente que, à primeira vista, tal coisa poderá agitar a alma e a pessoa poderá até preocupar-se exageradamente. Não é preciso tanto. A primeira coisa é tratar com indiferença e não dar atenção àquilo, tentando calmamente voltar à solidão anterior. Se ficamos receosos demais dos 'maus pensamentos', aí é que eles se insinuarão. Por isto, é importante saber que a dinâmica destas distrações geralmente consiste em destacar coisas amadas ou temidas, concordando isto com o elenco das quatro paixões descritas por S. João da Cruz: a esperança e o gozo com as coisas amadas, e o temor e a dor com as coisas temidas.
Esvaziada a memória, chega a vez da imaginação. Estou pondo isto numa sucessão para facilitar a compreensão. Não se trata, porém, de um 'passo-a-passo' cronológico. Creio que, falando a grosso modo da quietude da imaginação, damos a entender a forma de como lidar com a fantasia, outra faculdade interior, devido à semelhança entre ambas. Vamos lá. A imaginação é, como dizia Sta Teresa D'Avila, a "louca da casa". E muito do que ela mostra deve ser desconsiderado, sobretudo se o que a motiva são aquelas quatro paixões de que falamos acima. No caso da oração, se estabelecemos o silêncio nas outras faculdades, a imaginação simplesmente ficará sem um objeto definido, pois ela tende a vincular-se com os objetos sobre os quais meditamos ou dos quais lembramos. E, deixada assim 'à toa', ela inicia o seu desfile de estranhas figuras, rsrsrs...
E aqui devemos seguir o que já vínhamos fazendo: Buscar calmamente o silêncio, também da imaginação. Mas nada de violências; isto agita. Se ela mantém-se 'brincalhona', importa ser-lhe indiferente. Para isto, o autor anônimo do livro "A Nuvem do Não Saber" recomenda que se olhe como que por cima das distrações. São como crianças que, em busca de atenção, fazem todo tipo de coisa. Ignore-as e, com o tempo, elas tendem a se aquietar.
É claro que este assunto é extenso e pode ser mal compreendido. E aqui vai muitíssimo sucinto. Sobretudo, este é um tema eminentemente prático. Em níveis naturais, o silêncio é questão de disciplina. Claro que, mesmo aí, o auxílio de Nosso Senhor é imprescindível. Mas há níveis mais perfeitos e sobrenaturais de quietude, e, para saber algo a respeito, basta procurar na vida dos santos. Leia-se, por exemplo, o conhecido e grande S. Pio de Pietrelcina e os "vazios perfeitos" de suas orações.
Este silêncio natural, a que chamamos também de ativo - porque depende, essencialmente, do nosso esforço e iniciativa - dispõe para a contemplação ou o silêncio mais perfeito. Importa perseverar.
Continuo...
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