Papa Bento XVI
"Se és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se transformem em pão" (Mt 4,3) - assim diz a primeira tentação (de Jesus). As palavras "Se és o Filho de Deus..." serão ditas novamente, pouco depois, pelos escarnecedores junto da cruz: "Se és o Filho de Deus, então desce da cruz..." (Mt 27,40). O livro da Sabedoria já havia previsto esta situação: "Se o justo é realmente o filho de Deus, então Deus o amparará..." (Sab 2,18). Escárnio e tentação andam aqui perfeitamente juntos: para se tornar digno de fé, Jesus deve apresentar a prova para a sua pretensão. Esta exigência de prova percorre toda a história da vida de Jesus, visto que constantemente o acusam de não ter provado suficientemente pois não realizou o grande milagre que retirasse toda a ambigüidade e toda a contradição e que a todos clara e indiscutivelmente mostrasse quem ele era ou não.
E esta exigência a respeito de Deus, de Cristo e da Igreja tem sido constantemente mantida ao longo de toda a história: Se tu existes, ó Deus, então tu mesmo te deves mostrar. Então deves retirar as nuvens do teu escondimento e dar-nos a clareza que pretendemos. Se Tu, Cristo, és realmente o Filho de Deus e não um dos iluminados, como sempre apareceram na história, então Tu deves mostrar isso de um modo muito mais claro do que o fazes. E então Tu deves dar à Tua Igreja, se ela verdadeiramente deve ser a Tua, uma outra medida de clareza, diferente daquela que na realidade tem.
(...) A prova da existência de Deus que o tentador propõe na primeira tentação consiste em transformar em pão as pedras do deserto. Trata-se, em primeiro lugar, da fome de Jesus no sentido literal como viu S. Lucas: "Diz a esta pedra que se transforme em pão" (Lc 4,3) Mas S. Mateus compreende a tentação de um modo mais abrangente, como já durante a vida do Jesus terreno e como durante toda a história Lhe fora e Lhe será apresentada.
O que há de mais trágico, o que mais contradiz a fé num Deus bom e a fé num redentor do homem do que a fome na humanidade? A primeira prova de identidade do redentor perante o mundo e para o mundo não deverá ser que Ele lhe dê pão e que acabe com toda a espécie de fome? Durante o tempo da peregrinação pelo deserto, Deus tinha alimentado o povo de Israel com o pão descido do céu, com o maná. Pensava-se então poder reconhecer nisto uma imagem do tempo messiânico: não devia, e não deve, o redentor do mundo provar a sua identidade dando a todos de comer? Não é o problema da alimentação do mundo, e em geral, o problema social, o primeiro e autêntico critério pelo qual a redenção deve ser medida? Pode alguém com direito dizer-se redentor se não satisfizer este critério? Do modo conceitual mais elevado, o marxismo fez disto o cerne da sua promessa de salvação: ele cuidaria para que acabasse toda a fome e que "o deserto se tornasse pão..."
"Se és o Filho de Deus..." - que desafio. E não se deve dizer o mesmo à Igreja: se queres ser a Igreja de Deus, então te preocupa em primeiro lugar com o pão para o mundo, o resto virá a seguir? É difícil desponder a este desafio, precisamente porque insistentemente nos chega e nos deve chegar aos ouvidos e à alma o grito dos famintos. O tema do pão está presente em todo o Evangelho e deve ser considerado em toda a sua amplitude.
Há ainda outras duas grandes histórias na vida de jesus envolvendo pão. A primeira história é a multiplicação dos pães para os milhares de pessoas que seguiram Jesus até o deserto. Mas por que agora é feito o que antes tinha sido repelido como tentação? Os homens tinham vindo para escutar a palavra de Deus e tinham por isso abandonado todo o resto. E assim, como homens que tinham aberto o seu coração para Deus e para os outros, aqueles podem receber o pão com merecimento. Este milagre do pão envolve três coisas: a primeira é a procura de Deus, da sua palavra, da reta instrução para toda a vida; depois o pão é pedido a Deus; e finalmente a disposição recíproca para a partilha é um elemento essencial do miliagre. Escutar Deus torna-se vida com Deus e isso conduz da fé ao amor, à descoberta do outro. Jesus nã é indiferente à fome dos homens, às suas necessidades corporais, mas situa tudo isso no contexto correto e confere-lhe a devida ordem.
A segunda história do pão aponta já para a terceira e é preparação para ela: a Última Ceia, que se torna Eucaristia da Igreja e o permanente milagre do pão de Jesus. Jesus mesmo se tornou o grão e trigo que deve morrer, para que dê muito fruto (Jo 12,24). Ele mesmo se tornou pão para nós, e esta multiplicação dos pães dura inesgotavelmente até o fim dos tempos. Assim compreenderemos agora a palavra de jesus, que Ele retira do Antigo Testamento (Dt 8,3), para com ela repelir o tentador: "O homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4,4). A este respeito há uma expressão do jesuíta alemão Alfed Delp, que foi condenado à morte pelos nazistas: "O pão é importante, a liberdade é mais importante, mas o mais importante de tudo é a adoração".
Onde esta ordem dos bens não for respeitada, mas invertida, não haverá nenhuma justiça, não haverá mais cuidado com os homens que sofrem; mas precisamente aí o domínio dos bens materiais será desorganizado e destruído. Onde Deus é considerado uma grandeza secundária, onde pode ser deixado de lado por algum tempo ou por todo o tempo por causa de coisas mais importantes, aí precisamente fracassam essas coisas pretensamente mais importantes. Não é só o desfecho negativo da experiência marxista que o demonstra.
A ajuda do Ocidente para o desenvolvimento com base em princípios puramente técnicos e materiais - que não só deixa Deus de fora, mas também força o homem a d'Ele se afastar com o orgulho do seu saber fazer melhor - foi precisamente o tipo de ajuda que criou o Terceiro Mundo no sentido que hoje se entende. Esta "ajuda" empurrou para o lado as estruturas religiosas, morais e sociais e instaurou no vazio a sua mentalidade tecnológica. Ela julgava poder transformar pedras em pão, mas gerou pedras em fez de pão. Trata-se do primado de Deus. Trata-se de O reconhecer como realidade, como a realidade sem a qual nada mais pode ser bom. A história não pode ser regulada longe de Deus por estruturas simplesmente materiais. Se o coração do homem não for bom, então nada pode tornar-se bom. E a bondade do coração só pode, em última instância, vir daquele que é bom, que é o bem em si mesmo.
Pode naturalmente perguntar-se por que Deus não fez um mundo no qual a sua presença fosse mais evidente; por que Cristo não deixou atrás de si um outro esplendor da sua presença, mais adequado e irresistível. Este é o mistério de Deus e do homem no qual não podemos penetrar. Vivemos num mundo no qual tudo deve ser palpável, e Deus não apresenta nenhuma evidência do que é palpável; Deus só pode ser procurado e encontrado se abrirmos o coração, se nos remetermos ao "êxodo" do "Egito". Neste mundo temos de nos opor aos enganos das falsas filosofias e reconhecer que não podemos viver só de pão, mas, antes de mais nada, da obediência à palavra de Deus. E somente onde esta obediência for vivida é que cresce a atitude que permite criar pão para todos.
Bento XVI, Jesus de Nazaré, p.43-46. (Grifos meus)
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